segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Produção de carne e bactérias multirresistentes

 

                                            Nelore pintado. Fonte: https://dicas.boisaude.com.br/o-que-significa-e-como-comprar-boi-po/

O Brasil é um dos maiores produtores e exportadores de carne  do mundo, com uma projeção de 10,5 milhões de toneladas de carne bovina e 4,2 milhões de toneladas de carne suína para o ano de 2020. Dessa forma, é fácil presumir que seja um ponto positivo para o desenvolvimento econômico do país demonstrar tamanha relevância no que tange a questão de exportação de commodities.

No entanto, essa produção de carne em grande escala, tem consequências para a saúde pública. Uma das problemáticas envolvidas com os modelos de pecuária, principalmente a intensiva, é justamente a contribuição para o desenvolvimento acelerado e possível disseminação das denominadas superbactérias ou bactérias multirresistentes. Para compreender melhor o cenário no qual estamos inseridos, são necessárias algumas informações.


Foto ilustrativa de antibióticos. Fonte: https://medium.com/bioblog-esem/antibióticos-os-medicamentos-que-revolucionaram-a-medicina-contemporânea-1a620aa98d13

Na pecuária, os antibióticos são empregados de três formas: 

-Uso terapêutico: quando o animal é acometido por alguma infecção e necessita de tratamento, assim como nós seres humanos;

-Uso preventivo: como o nome diz, como forma de prevenir doenças futuras, por exemplo quando os animais jovens passam pela desmama e consequentemente passam por maior estresse e imunossupressão, ficando mais suscetível à infecções bacterianas. 

Ainda dentro da categoria de uso preventivo, temos duas subdivisões: a profilaxia e a metaprofilaxia. A profilaxia consiste em uso em doses menores, quando por exemplo há casos de infecção em rebanhos da região e devido à dificuldade das condições de higiene locais, bem como a falta de espaço físico, que gera uma grande aglomeração dos animais em confinamento, opta-se pela administração de antibióticos no rebanho inteiro.

Já a metaprofilaxia, também consiste na administração das drogas no rebanho como um todo. Caso algum indivíduo seja diagnosticado com uma infecção, todos são medicados a fim de evitar que o rebanho inteiro seja infectado.

-Uso como melhorador de desempenho: Essa forma de utilização teve início na década de 50 com a liberação pelo FDA (Food and Drug Administration). Nesse caso, os antibióticos eram inseridos na ração dos animais, passando a compor a dieta do rebanho. A finalidade desse uso é selecionar uma microbiota intestinal que seja capaz de aumentar a conversão alimentar, isto é, resultando no ganho de peso de forma acelerada do rebanho. Este último modelo de uso vem sido debatido e cada vez mais e os países e empresas do ramo estão gradativamente deixando de fazer o uso, por ser o mais problemático de todos.

Como os antibióticos influenciam na formação de superbactérias ou bactérias multirresistentes? 

As bactérias, se reproduzem de forma muito rápida através de fissão binária, isto é, consiste em uma célula gerando uma cópia idêntica de si mesma. Processo que, em condições ambientais ótimas, acontece em minutos. Por isso, as bactérias crescem em ritmo exponencial e em um curto intervalo de tempo, o que possibilita uma grande variabilidade genética dentro de uma mesma comunidade bacteriana, devido às maiores chances de mutações genéticas, bem como as interações entre os indivíduos que compõe a comunidade.

Fissão binária. Fonte: https://www.sobiologia.com.br/conteudos/Reinos/biomonera3.php

Em se tratando do ambiente gastrointestinal, existe uma gama de microrganismos presentes que muitas vezes auxiliam no processo de digestão do bolo alimentar, no entanto, algumas dessas bactérias quando fora do trato digestivo, pode causar uma série de infecções prejudiciais aos organismos, incluindo os seres humanos.

Dessa forma, quando há uma pressão seletiva no meio, ocorre o que é denominado como seleção natural, neste caso, as bactérias que são suscetíveis aos medicamentos são eliminadas. Em contrapartida, aquelas que forem resistentes permanecem vivas e restauram a comunidade bacteriana, uma vez que a reprodução ocorre de forma rápida. Essa forma de transmissão, de genes que conferem resistência, é classificada como transmissão vertical.

Mas ainda existe uma outra forma de transmissão de genes ou elementos genéticos transmissíveis e extracromossomais, que é denominada transmissão horizontal, que consiste na transmissão de genes entre bactérias da mesma espécie ou até mesmo entre bactérias de espécies distintas. Tais mecanismos são:

    -Transformação: mecanismo pelo qual as bactérias adquirem material genético disperso no ambiente, muitas vezes provenientes das bactérias que foram eliminadas pelos antibióticos. Esse mecanismo consiste basicamente no aumento de permeabilidade das membranas bacterianas a fim de permitir a entrada desses fragmentos de genes.


Transformação bacteriana. Fonte: http://www.vestiprovas.com.br/questao.php?questao=uftm-2013-1-9-biologia-diversidade-da-vida-geral-23709
    -Conjugação: quando ocorre a formação de um canal através de um poro entre duas bactérias, que permite a troca direta de material genético.

Conjugação bacteriana. Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-2-Desenho-esquematico-da-conjugacao-bacteriana-1-DNA-cromossomico-2_fig2_316841484
    -Infecção viral por bacteriófagos, nesses casos, os vírus infectantes carregam a inserem os genes nessas bactérias e que podem eventualmente ser genes que conferem resistência aos antibióticos.

Bacteriófagos. Fonte: https://www.seuamigofarmaceutico.com.br/artigos-e-variedades/como-virus-equotbonsequot-podem-influenciar-a-saude/380

Estes elementos genéticos extracromossômicos livres, pode ser transmitidos e recombinados entre as espécies de bactérias como um grupamento mais complexo, o que é denominado um cluster de genes, possibilitando a formação das bactérias multirresistentes (aquelas que apresentam resistência à duas ou mais classes de antibióticos). E através dessas trocas genéticas aceleradas pela pressão seletiva que os antibióticos exercem, cada vez mais bactérias desenvolvem resistência ao longo das linhagens.

Um estudo realizado na China encontrou uma cepa de Escherichia coli em carne suína que apresentou resistência à colistina, o que gerou um estado de alerta quanto a essa questão. Posteriormente, a mesma cepa foi encontrada na carne de frangos da região. Neste caso, o gene que confere resistência é o MCR-1, que tem potencial para ser transmitido para outras espécies como a Klebsiella pneumoniae e a Pseudomonas aeruginosa, comumente responsáveis pelas infecções hospitalares, que na maioria das vezes levam os pacientes à óbito, pois os tratamentos se mostram cada vez mais ineficientes.

Quais são as formas de contaminação por essas bactérias nas carnes? 

    -Durante o abate, o material intestinal pode entrar em contato com a carne;

    -Ao longo do processo pós abate, os utensílios como ganchos, esteiras, serras e outros podem ser contaminados;

Animais em frigorífico. Fonte: https://estado.rs.gov.br/frigorifico-de-santiago-esta-liberado-para-abates

    -Os manipuladores que trabalham na indústria e nos mercados nos quais as carnes são comercializadas podem contaminar a carne ao manuseá-las;

Manipuladores de alimentos em frigorífico. Fonte: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/industria-da-carne-e-pandemia-automatizar-nao-e-solucao/

    -Além de tudo isso, em nossas casas, pode ocorrer a contaminação cruzada, isto é, uma bactéria multirresistente que estava presente inicialmente na carne comprada, durante o preparo em nossas casas, pode contaminar as facas utilizadas, a tábua de corte, a pia e as nossas mãos. E embora a carne contaminada passe pelo processo de cozimento, eliminando as bactérias patógenas termossensíveis, aquelas que podem ter restado em nossos utensílios podem contaminar os alimentos crus, como frutas e saladas, sendo posteriormente ingeridas por nós e consequentemente levando a uma infecção bacteriana.


Contaminação cruzada. Fonte: http://barreirogrande.com.br/contaminacao-cruzada/

Diante deste cenário, quais seriam possíveis soluções para este problema? 

-Uso racional de antibióticos, no âmbito da agropecuária;

-Políticas públicas que tenham como objetivo estimular um consumo mais consciente de proteína animal, ao reduzir a demanda por carne, reduz-se também a necessidade de uma produção em larga escala e de forma tão acelerada, possibilitando a criação de animais de forma orgânica, isto é, respeitando o intervalo de tempo mais adequado ao ciclo de vida dos animais, bem como criando rebanhos menores, em condições higiênico-sanitárias mais adequadas, reduzindo as chances de infecções.

-Mudar a forma como vivemos em sociedade, desde hábitos alimentares até os modelos projetados de megalópolis, com cada vez mais pessoas habitando espaços cada vez menores. Pois com o estilo de vida extremamente insustentável que possuímos, viver em harmonia com o meio ambiente se mostra como uma realidade distópica;

            -Ter boas práticas de higiene e manipulação dos alimentos;

-Dar preferência aos produtores orgânicos, que se preocupam não somente com a produção, mas também com a responsabilidade socioambiental oriunda da atividade.


Referências bibliográficas

https://www.bbc.com/portuguese/geral-50119820

https://nacoesunidas.org/oms-lanca-estrategia-para-combater-resistencia-de-bacterias-a-antibioticos/

https://drauziovarella.uol.com.br/doencas-e-sintomas/kpc-superbacteria/

https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5664:folha-informativa-resistencia-aos-antibioticos&Itemid=812

https://alociencia.com.br/podcast/superbacterias-na-producao-de-carne/



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